Um animal aparece

Quase tão frequente como o caso do médico que depois de oitenta anos de exercício se verificou que não era médico é o caso do animal perdido que aparece.   Tal como um falso médico nunca é imunologista, assim o animal que aparece nunca é selvagem.  Aparecem apenas animais domésticos: cães, gatos, por vezes pássaros.   Aparecem muito tempo depois de terem desaparecido, e depois de se ter perdido a esperança de os encontrar; e aparecem muitas vezes à porta das casas dos donos.   Os animais selvagens não aparecem e não teriam onde aparecer: são como médicos sem hospital; são animais liberais.

Quando um animal aparece a pergunta que o público normalmente faz é: como é que aquele animal conseguiu aparecer?  As respostas avocam sentidos de orientação prodigiosos, e correrias por montes e vales; ou então teorias sobre a memória dos bichos, e sobre o modo como o seu aparecimento exprime nostalgia, gratidão ou amor pelos seus primos racionais, que os move a atravessar as autoestradas.   Estas respostas dão por adquirido que é natural que os animais apareçam, e que não há nada de maravilhoso nas aparições.   Pressupõem que os animais aparecem como qualquer outra coisa aparece ou desaparece, e que a esse respeito não há nada de animal nos animais.

Ao considerar natural que um animal apareça, o público subestima o lado extraordinário de todos os aparecimentos.   Os donos são pelo contrário sensíveis a esse lado extraordinário.  Aquilo que tem a ver com o que nos acontece depois de todas as probabilidades terem sido afastadas é sempre aquilo que valorizamos mais.   Um aparecimento não é no entanto extraordinário porque seja impossível, como um cão com pelos de gato, ou um gato com asas que tivesse desenvolvido no estrangeiro: é simplesmente um caso muito improvável.  Uma probabilidade baixa não exclui a possibilidade de um acontecimento extraordinário.

Quando apesar das baixas probabilidades aparece o cão, o impulso dos donos é o de matarem o seu vitelo mais gordo e darem uma grande festa; e bem, porque a ocorrência é extraordinária.  Mas mais extraordinário, quando pensamos nisso, é aparecer à nossa porta um animal que foi nosso.   Ao contrário das pessoas em situações parecidas, os animais domésticos não reaparecem por motivos, ou com desculpas: aparecem-nos sempre sem explicação e sem explicações; e aliás não são capazes de explicar coisa nenhuma.

Quando um animal aparece, o facto do seu aparecimento fica sempre por esclarecer.  Alguns donos, depois da satisfação, do contentamento e dos festejos, e mesmo algum público, depois das tentativas frustes de ciência e de resposta, pressentirão que o que é verdadeiramente extraordinário quando um animal aparece não é a improbabilidade da ocorrência, que afinal pode sempre ocorrer; mas o modo incaracterístico de cão batido com que até os gatos aparecem.  Esse modo faz-nos entrever a grande regra do bom-senso moral: aceitar os bichos, e não fazer muitas perguntas.

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Investir na América e fugir de risca-carros

Vivemos nos EUA vindos de um Portugal pró pobreza onde, quando éramos crianças nos anos 80 víamos, com tristeza, gente a insultar em vez de elogiar empreendedores do imobiliário como “patos bravos” e a riscar-lhes os mercedes, cheios de inveja do sucesso e dinamismo desses criadores de riqueza que nos traziam progresso.

Passadas várias décadas, esses invejosos “risca-mercedes” continuam pequeninos e com pensamento pequenino, a riscar veículos, agora teslas e foguetões metaforicamente, em todos os jornais e canais de TV portugueses, insultando sem parar o empreendedor Musk.

Perto do recente final do ano de 2024 assistimos ao vivo, maravilhados, no cabo Canaveral na Florida, ao lançamento do foguetão Falcon 9 reutilizável da SpaceX liderada por Elon Musk. Este carregava para o espaço quatro satélites de comunicação da companhia Astranis, financiada por Marc Andreessen, um dos principais propulsores das novas tecnologias mundiais, desde ter massificado a internet fundando a Netscape a contribuir para a inteligência artificial, investindo na Open AI do ChatGPT. Andreessen e Musk, entre tantos outros empresários que sempre impulsionaram inovação e riqueza para si, para os seus empregados e acionistas, além de para a América votaram no partido republicano, juntamente com a maioria da população americana que sabe que vai beneficiar deles.

No entanto em Portugal sem saberem do que estão a falar, os invejosos risca-veículos que poluem quase toda a nossa comunicação social, não permitindo qualquer contraditório à sua pequenez, insultam todos os que apoiarem ou vão fazer parte da nova administração americana que vai tomar posse a 20 de Janeiro de 2025, incluindo empresários fabulosos do calibre de Musk, Andreessen, JD Vance, Bill Ackman, Vivek Ramaswamy, Scott Bessent, Howard Lutnick ou Jared Isaacman. Este último, por exemplo, além de fundador e CEO de companhias como os outros citados, é ainda astronauta altamente qualificado que treina pilotos tipo “top gun”. São Indivíduos fabulosamente dinâmicos e cultos cuja liderança em empresas move equipas de milhares de outros americanos ou imigrantes altamente motivados por eles, fazendo dos EUA líderes mundiais das novas tecnologias, indústria espacial, biotecnologia, finança e tantas outras áreas criadoras de bem estar e riqueza para a população americana. Agora vão liderar o governo americano. Quem nos dera ser liderados por eles ou portugueses do mesmo calibre em vez dos políticos tradicionais que nos vendem nos jornais e TVs de Lisboa!

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No entanto, são insultados pelos ignorantes risca-carros lusitanos que se acham muito espertos por os insultarem e avisarem dos “perigos” deles. Avisam-nos por exemplo, com uma ignorância enorme para assustar toda a gente que tenha familiares nos EUA, que todos os imigrantes vamos ser deportados dos EUA, esquecendo-se de dizer que são só os ilegais e criminosos, enquanto todos os outros, como nos próprios e centenas de outros portugueses aqui com quem falamos, ou o próprio Musk que também é imigrante, nunca estivemos tão otimistas sobre o futuro económico da América. Uma onde haja baixa inflação, baixos impostos, ambiente propicio ao mérito, desenvolvimento empresarial e económico, além de segurança na fronteira. Por isso Musk quer ainda mais centenas de milhar de visas HB1 para emigrantes qualificados virem para os EUA (mas ai em Portugal escondem-vos isso)! Foi por isso, por exemplo, que a maioria dos homens hispânicos, incluindo milhões de imigrantes naturalizados americanos, votou no partido republicano. Por estarem fartos da esquerda empobrecedora que tomou conta dos seus países de origem e da correspondente imprensa de esquerda sempre a assustar falsamente a população para a manter na pobreza, com base em falsos argumentos de “fascismo”. Em tal comunicação social esquerdista como a portuguesa chegamos a ouvir atónitos e divertidos que os americanos só estão a vir para Portugal e a encarecer as nossas casas desde e por causa das recentíssimas eleições americanas, ignorando que isso acontece há anos e representando uma ínfima minoria dos 300 milhões de americanos. A falta de cultura e crescente ignorância da nossa esquerda é trágico-cómica. Longe vão os tempos dos intelectuais de esquerda! Ler, debater, explorar perspetivas diferentes, ou analisar dados não é com eles!

Portugal estaria muito melhor se fosse liderado ideologicamente por Musks criadores de riqueza em vez de Mortáguas. Isto foi o que aqui já afirmamos no final de Maio de 2022. As ações da Tesla nessa altura estavam a cerca de 200 euros. Agora estão a 400 euros dado que a autocondução completamente autónoma desses carros já é uma realidade inacreditável e que o robotaxi e outros produtos fantásticos da Tesla podem vir ai em breve, sem grandes obstáculos burocráticos regulamentares devido à influencia de Musk na nova administração republicana. Portanto quem acredita em Musk tem rendimentos de quase 50% ao ano, enquanto quem acredita em Mortáguas e toda a cangalhada ideológica igual a ela autorizada e omnipresente em todos os jornais impressos e canais de TV portuguesa (sem qualquer contraditório, todos os que discordarem deles e expuserem a sua ignorância são censurados) continua atolado num pais pobre de salários líquidos à volta de 1000 euros, com poucos, mesmo os mais qualificados, a ultrapassar os 2 ou 3 múltiplos disso. Já na Tesla e em todas as companhias dos empresários que citamos acima muitos funcionários qualificados ganham 30 vezes ou muito mais que esse múltiplo por mês. É a diferença entre uma cultura de centro e direita que adora e elogia quem guia e/ou cria bons carros e outra cultura de esquerda roída de inveja e maledicência.

A nova América republicana pró riqueza e pro negócios inovadores está imparável em termos tecnológicos. São tantos os bons investimentos que vemos à nossa volta que a dificuldade agora é em escolher as melhores ações em que queremos investir. O mais provável é que a maioria delas vá subir neste novo ambiente propicio aos empresários, enriquecendo ainda mais o povo americano e as suas contas de investimento e reformas. Tais ações incluem as companhias de chips ou de software para inteligência artificial passando pelas companhias dos computadores quânticos ou de foguetões, satélites e viagens espaciais. E, claro, novas companhias de energia nuclear ou de reatores modulares que já estão a fornecer e vão fornecer ainda mais a enorme quantidade de energia necessária à nova tecnologia e centros de dados. A américa vai prosperar ainda mais desde as companhias de gás natural às companhias de entregas por drone. Com uma administração pró-capitalista, pró-mérito, pró-esforço individual e colectivo, pró-empresarial a governar parecem não haver limites para a riqueza do povo americano. Todos os dados mostram que tal povo vai ficando cada vez mais distante dos pequenos rendimentos portugueses.

Por tudo isto daqui dos prósperos EUA aflige-nos ver no pobre Portugal, como se em 2025 nada tivesse mudado desde os anos 1980s, jovens, até os supostamente de centro-direita, a acharem-se inteligentes (em vez de masoquistas) por papaguearem acefalamente e sem qualquer espírito inquisitivo ou critico, todos os insultos proferidos contra Musk ou contra o centro e a direita americana em geral pelo cardume de “risca-carros” da comunicação social de esquerda portuguesa. Esta empobrece Portugal há décadas com a pequenez da sua mentalidade e ignorância factual, cultural e económica. Não acreditem neles. Não os leiam. Não os ouçam na TV. São apenas eternos portadores de maledicência, inveja e miséria. Em vez disso invistam o vosso tempo de leitura e espaço mediático, a lerem e ouvirem além dos melhores cronistas dos Observador (os que não tem medo nem se deixam intimidar na defesa da verdade por nenhuma esquerda como o fabuloso Alberto Goncalves, por exemplo) diretamente da fonte nos EUA. Consultem órgãos americanos de centro e direita como o Wall Street Journal, a TV Newsnation ou o podcaster Joe Rogan por exemplo (não a imprensa tradicional e desgastada de esquerda americana cada vez mais extremada, ensimesmada e afastada dos interesses e realidade da população americana). Aprendam tudo o que poderem sobre a nova prosperidade americana, invistam na riqueza da bolsa americana, tentem construir um Portugal empreendedor e admirador de quem arrisca para criar empresas e inovação, mais influenciado pela riqueza americana do que pela ideologia marxista socialista invejosa empobrecedora imposta há décadas sem fim em Portugal mesmo quando a população vota à direita! É melhor para o vosso futuro e mentalidade não se deixarem atolar no pântano da imprensa portuguesa tradicional quase totalmente de esquerda que pôs e mantem Portugal nos últimos lugares económicos da europa em poder de compra. Essa só serve para estar sempre a riscar há décadas, invejosa, os mercedes, teslas ou foguetões Falcon 9 dos bem-sucedidos nacionais ou estrangeiros cuja mentalidade poderia trazer progresso, riqueza e inovação a Portugal.

Email Aberto a Marcelo

Escrevo-lhe hoje, Presidente Marcelo, com o intuito de lhe dar uma pequena perspectiva do seu legado como Presidente da República Portuguesa. Visto ser um email, tentarei ser breve. Senti o impulso de o escrever depois de um passeio que dei pela Baixa de Lisboa na tarde da véspera de Natal. Passava pela Rua Garrett, quando notei um presépio. Fechado a grade, ladeado de cadeados, sem iluminação. Na véspera de Natal um país de matriz Cristã, nem consegue ter um presépio iluminado numa zona proeminente. Continuando a descida, vejo que a rua Augusta foi convertida numa feira ambulante onde nada vendido tem qualquer conexão com Portugal. Que turismo teremos, quando Lisboa se tornar exatamente o mesmo que qualquer outra cidade Europeia? O turismo advém da particularidade de um local, não da sua multiculturalidade.

Passei na minha adolescência tempos felizes entre a Baixa de Lisboa e Almada. Paragem rápida pela Igreja de S. Nicolau (a Igreja mais bonita de Lisboa), fumava um pau de canela (tinha 16 anos) entre amigos e conversas embaraçosas de adolescente. Apanhava depois o barco para Cacilhas. Sem medos. Quanto tiver filhas e filhos quero que tenham a oportunidade de desfrutar da Lisboa, Almada e Caparica em que cresci. Por muito que goste de Inverness, prefiro que cresçam com sol e caldo verde do que com haggis e ventos do mar do Norte. Que aproveitem as tardes para passear por Lisboa, em segurança, sem medo de gangues, drogas e violência. Possam apanhar o cacilheiro em paz e sossego, e entrar numa Almada viva e entusiasmante. Não serem números nalguma folha de cálculo do Governo, prontas a ser exportadas para o mundo. Custa ver as ruas de Almada, a minha primeira morada, maltratadas e ao abandono. Ver a Igreja onde fui baptizado cada vez mais vazia. E continuamos a falar de acolher, enquanto tudo degenera a olhos vistos.  Quando se acabarem os garibaldis do Condestável, e as bicas do café Páscoa, o que sobra?

Nos últimos anos esteve mais preocupado em promover reparações a países que já são independentes há meio século. Deveríamos também investigar o trajecto do ouro e a prata que os cartagineses exploraram na península Ibérica? Fazemos contas com o Norte de África? Escolher o ponto de partida das reparações revela o mesmo  carácter arbitrário que parece ser aplicado aos que querem o aborto como bandeira do progresso. Como se não bastassem as recentes crises  económicas, a pandemia e instabilidade laboral, quer também agora impor a mim e aos meus a responsabilidade sobre eventos acontecidos quando ainda não tínhamos sido concebidos? Sob a sua alçada, tentaram pela calada retirar os direitos de cidadãos Portugueses a residir no estrangeiro de aceder ao serviço nacional de saúde. Nos consulados Portugueses (Reino Unido), o Confucionismo e a total ausência de simpatia para com os Portugueses demonstram por quem os seus sinos dobram. Vi, preocupado, o rol de más decisões que fez, como a estranha reabilitação de António Costa. Então António Costa não serve para Portugal, mas serve para a Europa, com o seu inglês macarrónico e uma condecoração por si atribuída? Condecora quem não deve, não quer saber dos que dia a dia vão sobrevivendo, dos que se esfolaram a trabalhar, entre cursos superiores e quatro empregos part-time, para depois serem humilhados por uma classe política que os não quer cá.

Os conflitos culturais que são cada vez mais visíveis no Reino Unido, e nos quais Keir Starmer, primeiro- ministro Britânico, continua a não estar particularmente interessado (embora já fossem descortinados há uma década por Douglas Murray, mas ninguém quis ouvir) estão finalmente a ser expostos. Também em Portugal a diário temos agora situações tão bicudas que nem a palavra sensações consegue mascarar a natureza da insegurança vivida. Não é normal indivíduos acenderem fogueiras ao pé do Cais do Sodré no meio de um dia de calor. Não é normal que na estação de serviço do Fundão a casa de banho das mulheres seja tomada por homens de idade militar e que tenha que ser eu e a minha mãe a desbloquear o caminho para que as senhoras que estavam à espera a possam utilizar. Não é normal que na Avenida da Igreja, senhoras de idade confidenciem que já quase não vão à Missa, pois têm medo de sair à rua. E continua a falar de multiculturalismo, de inclusividade. Portugal pode ter muitos unicórnios, mas o mundo não é um. Um bocadinho menos de graxa a Paddy Cosgrove e mais pulso no que se passa no dia a dia dos Portugueses era o mínimo que poderia ter feito.

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No seu mais recente discurso voltou com as mesmas platitudes, encheu a boca de abrilismos, do discurso de todos, sem indicar nada de concreto. A verdadeira liberdade vem da escolha. A multiculturalidade, pluralismo e diplomacia são uma arte de saber o que aceitar e o que não aceitar. Não escolher nada e querer tudo é apenas uma fogueira de vaidades, vanidades e banalidades. A coesão e alta confiança que produz sociedades harmoniosas exige a presença de escrutínio nas políticas de acolhimento e imigracão. E isto inclui operações policiais, quando um bairro se torna perigoso para os residentes. Um dos maiores extremismos que temos é o da cobardia. Políticos como o senhor tinham a responsabilidade de proteger as operações policiais que nos mantêm seguros, e não lançar farpas mal disfarçadas em discursos redundantes.

Deveria dar-lhe pausa para reflectir que cientistas têm agora que se desdobrar e escrever sobre a situação social e política Portuguesa. Mas a qualidade de vida ficou tão visivelmente deteriorada, a sua falta de carinho pelos Portugueses que não querem ter de abandonar o país, e a total ausência de pulso pela insegurança e falta de serviços em todo o país (para quando a linha da Beira Alta?) assim o requer. Não tenho amigos na política, não tenho curso em ciência política, não faço parte de nenhum grupo de activismo; e, no entanto, parece que percebo a situação atual bastante melhor que a maioria dos deputados da Assembleia da República, amedrontados pelo açaime da cobardia. Não se torne Portugal um pleonasmo de Emigração. Não vou abandonar o país. Farei o que puder, com as parcas capacidades que tenho, para contribuir para o crescimento de Portugal, mesmo que as políticas dos sucessivos governos  não me queiram  cá. Usarei do verdadeiro internacionalismo, não para sair do país, mas para cumprir o que outros apenas apregoam.

Todas estas suas atitudes têm impacto no próprio conceito da Defesa Nacional. Quem, exatamente, vai defender a zona económica em que Portugal, a par e passo com outras capitais europeias, se tornou? Se não há uma matriz cultural a respeitar, de onde vem o dever para com o país? Mas nada disto lhe interessa. Quer apenas apregoar um multiculturalismo oco, vazio, sem alma. Volte a ler e comentar livros, o seu nicho. Para isso tem algum talento. Recomendo o conto “Sete Andares” de Dino Buzzati, um curto esboço que pode inspirar alguma reflexão sobre o que se passa na Europa. Percorra este verão os caminhos de Santiago e pense no que fez em relação aos Portugueses e ao país. E, por favor, não apague este email.

Estado e associativismo cultural: que futuro?

As associações de cultura e recreio/lazer, de cariz não profissionalizado, constituem, há muito, um ecossistema de inegável relevância em Portugal, enquadrando-se no campo da economia social (terceiro sector) e estando prevista na Constituição da República Portuguesa a sua valorização e protecção por parte do Estado.

O seu impacto qualitativo afere-se não apenas pelo efeito imediato das suas dinâmicas na esfera local, mas também por uma repercussão a médio-longo prazo, mormente como alfobre para a germinação de uma massa crítica, implicada e criativa com potencial transformador e valor acrescentado para os territórios e suas comunidades.

O ADN do meio associativo cultural prima por cinco traços essenciais para um incremento e consolidação da inclusão, coesão e participação: a transversalidade social patente na sua composição interclassista e na configuração dos seus públicos-alvo; a sua proximidade e imersão comunitárias; a densidade colaborativa em que assenta a sua intervenção; a base predominantemente voluntarista do seu trabalho; e a horizontalidade e informalidade relacionais, apesar de uma estruturação organizacional assente em órgãos sociais. Estes contextos independentes, maioritariamente de micro-média escala, constituem, assim, lugares privilegiados de afirmação identitária, aprendizagem, cidadania, solidariedade, cooperação e emancipação.

Em 2022, no âmbito de uma investigação sobre o associativismo popular, foi realizado um inquérito nacional pelo Observatório do Associativismo Popular com o Observatório Português das Actividades Culturais, cujos resultados foram sintetizados na obra O associativismo popular português no século XXI, recentemente editada, a qual, pelo seu teor e conclusões, merece uma atenção, em termos de discussão na esfera pública, que não foi dada pelos media ligados à cultura nem pelos sectores intelectual e político.

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Este estudo, que abarcou 1132 associações, veio confirmar uma percepção já existente no milieu cultural: quanto a apoios a esta área (no plano financeiro, na componente da construção/requalificação de espaços e da aquisição de equipamento técnico e/ou material, ou nas dimensões administrativa, fiscal e jurídica), em 87,9% dos casos são as câmaras municipais o principal coadjuvante, seguindo-se as juntas de freguesia (77,6%), as entidades privadas/empresas (51,9%), o Instituto Português do Desporto e Juventude (17,7%) e, por fim, o Estado Central (8,1%).

No que concerne à administração local, os diferentes modelos e mecanismos de apoio associativo adoptados pelas autarquias variam, em maior ou menor grau, em função das estratégias municipais, dos perfis dos executivos e gestores, de condicionalismos político-partidários e conjunturais, dos recursos orçamentais disponíveis e das características dos territórios e seus ecossistemas culturais.

Com a conversão das CCDR em institutos públicos em 2023, e a incorporação de novas competências nos campos da cultura e património (várias delas alocadas anteriormente às direcções regionais de cultura, entretanto extintas mas com um papel significativo junto dos agentes e populações), estes organismos da administração indirecta do Estado ganharam uma acrescida relevância e responsabilidade, numa lógica de maior escuta activa, proximidade e descentralização. Isso traduz-se, relativamente ao ecossistema associativo cultural, na definição e concretização de estratégias regionais, no aprofundamento e diversificação de políticas e mecanismos de apoio, na facilitação/mediação do acesso a programas europeus ou na criação de parcerias e redes de cooperação regionais.

A este panorama somam-se os apoios e protocolos específicos que entidades como o Instituto Português da Juventude e a Fundação INATEL estabelecem, no âmbito das suas missões, com associações de natureza cultural, artística e recreativa, bem como, por exemplo, as condições especiais, em matéria de direitos de autor e direitos conexos, previstas legalmente para as entidades culturais com estatuto de utilidade pública.

Não obstante a importância deste conjunto de apoios, mais ou menos dispersos, para o associativismo cultural e recreativo, será necessário e premente, do ponto de vista governamental, proceder a uma revisão crítica e actualização dos mesmos, no sentido também de um maior investimento orçamental que possar dar respostas mais incisivas, abrangentes, direccionadas e céleres às necessidades e expectativas dos territórios.

A questão infraestrutural (espaços, instalações, acessos, equipamentos e outros recursos técnicos e logísticos) afigura-se, neste particular, uma das mais sensíveis, na medida em que tende a ser a dimensão mais exigente, deficitária e problemática pela própria natureza e volume de encargos associados. Actualmente, a nível do Estado Central, apenas o programa “Equipamentos” (gerido pela Direcção-Geral das Autarquias Locais com o apoio das CCDR) garante um suporte a essa tipologia específica de despesa, o qual ganhará com uma actualização legislativo-regulamentar e com um maior robustecimento financeiro em face da realidade nacional e da amplitude de potenciais destinatários.

Tem-se assistido a um processo de recomposição do perfil e da cultura organizacional do tecido associativo. Um número relevante de associações culturais, quer mais antigas quer mais recentes, tem vindo, gradualmente, a profissionalizar-se, transformando-se em entidades prestadoras de serviços, numa lógica de mercado. Por outro lado, a própria iniciativa privada de natureza comercial também vai operando cada vez mais em domínios tradicionalmente dinamizados pelo movimento associativo.

Urge um debate e reflexão aturados em torno do tema do associativismo popular (cultural e recreativo) e seus desafios e constrangimentos actuais, envolvendo as áreas governativas competentes (cultura, coesão territorial, economia, solidariedade), as estruturas representativas do sector (Confederação Portuguesa das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto, Confederação Musical Portuguesa, Federação do Folclore Português, entre outras), as comunidades intermunicipais, as autarquias, a Fundação INATEL, o IPDJ e outras entidades públicas e independentes com produção de conhecimento sobre esta matéria.

Não existe ainda em Portugal, da parte do Estado Central, uma visão holística e integrada sobre o terceiro sector cultural, a qual se traduza numa política associativa coerente, robusta e articulada entre as várias instâncias públicas que nela participam activamente. É necessária uma abordagem sistémica, com visão estratégica, que, além de enquadrar e delimitar conceptualmente este ecossistema, o dote de um regime jurídico e fiscal adequado – por exemplo, espera-se desde 2013 por uma regulamentação fiscal específica para este universo, tal como então previsto na Lei de Bases da Economia Social –, que atenda à sua diversidade de perfis/tipologias e áreas de actuação (desde o associativismo de base popular e voluntária ao profissionalizado), e que também defina e consolide linhas e programas de apoio de âmbito nacional e regional para este universo, mormente aos níveis da capacitação/formação, dos equipamentos e das dinâmicas colaborativas quer de criação e programação em rede, quer de boas práticas intersectoriais.

Nem “só” de 150 horas extra se faz um médico

Há já alguns anos que tomei uma resolução pivotal na minha vida: a de não dar tempo de antena a absurdidades. Contudo, confesso que o texto que se segue é uma assumida resposta a uma das últimas que tive o desprazer de testemunhar, nomeadamente a opinião e resolução de um cronista determinado a recusar ser atendido por um médico que “só” queira fazer 150 horas extraordinárias. Debati se sequer devia satisfazer a sede de notoriedade e a declarada necessidade do referido cronista em cortejar a polémica mas, nos tempos que correm, é cada vez mais importante combater com factos a desinformação que tem por objectivo exaltar e atiçar ânimos sem os melhores interesses da sociedade em vista e que não presta nenhum serviço à mesma.

Vou apelar ao meu argumento de autoridade nesta matéria. Sou médica e faço formação médica no âmbito do meu internato de especialidade. Depois de 6 anos de estudo na faculdade de medicina, um ano de formação geral e 5 anos de formação em especialidade penso que estou autorizada a dizer que sei um pouquinho melhor que o dito cronista aquilo que diferencia um médico medíocre de um bom médico. Por outro lado, tenho também o benefício da experiência internacional, visto que a duração do meu internato médico tem sido passada na Alemanha.

Ora, pasme-se que, em terras germânicas, não é hábito fazerem-se as referidas 150 horas extraordinárias quando se exerce medicina. Pode acontecer que sejam feitas menos, que sejam feitas mais, mas, acima de tudo, aquilo que há muito tempo se tornou em Portugal natural é visto noutro país da Europa como uma aberração não desejada. Significa isto que a Alemanha forma maus médicos? Eu diria que as evidências e a enorme quantidade de medicina de qualidade que é feita na Alemanha em centros de prestígio internacional contradiz esta tese.

Em Portugal, assim como na Alemanha, o médico interno em formação representa a força de trabalho maior na enorme maioria dos hospitais. Estes médicos, para além do trabalho clínico incluindo urgências, têm também tarefas de formação acrescidas como cursos, trabalhos e projetos que têm de desenvolver no tempo do internato que pode variar de 3 a 6 anos. Os requisitos para completar uma especialidade são determinados pelo colégio da especialidade e pela respetiva ordem dos médicos que também determinam o tempo obrigatório para finalizar a mesma. Ora, em lado nenhum está escrito que eu, como médica interna, se fizer horas extraordinárias aos magotes posso concluir a minha especialidade mais cedo, visto que eu através desta “formação” acrescida elevei o meu saber e competência clínica. Aliás, no regulamento da minha ordem dos médicos aqui na Alemanha está escrito explicitamente que essas horas não contam para efeitos de internato. Se horas extraordinárias fizessem a excelência, podíamos formar especialistas em metade do tempo e encher os hospitais por Portugal e Alemanha fora. Podemos sonhar.

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Na minha experiência, as horas extraordinárias são na realidade períodos de enorme stress, desgaste físico e mental que em nada levam a uma melhoria do serviço prestado enquanto médico; muito pelo contrário, pioram-no significativamente. Para fundamentar esta afirmação basta ver o que faz a falta de sono às capacidades das pessoas. Estudos mostram que estar acordado durante 17 horas é o equivalente a um teor de álcool no sangue de 0,05% e estar acordado durante 24 horas um teor de 0,10%. Depois de tantas horas a pé, um médico não vai estar apto a tratar doentes, por muito que não queiramos aceitar esta realidade.

Para além das gravíssimas implicações de um constante desgaste na saúde física, cognitiva e emocional dos profissionais e por consequência dos doentes, também é importante falar da qualidade do trabalho que é feito nessas horas. Observação e exame físico de doentes, análises e exames, assim como o uso do pensamento crítico muito acima do nível de um ChatGPT com empatia à mistura em situações de enorme pressão não são propriamente as condições certas para exercer medicina, quanto mais para aprender seja o que for. São, quando muito, situações em que se aplica o conhecimento que já se tem que, no caso dos colegas mais inexperientes, vai ser obrigatoriamente menor do que aqueles que já trabalham na área há algum tempo. Se há a esperança de que em situações como esta, como por exemplo numa urgência de um hospital qualquer com cinco horas de espera para utentes, os orientadores médicos experientes vão ter tempo, capacidade e disposição para ensinar os jovens médicos, desenganem-se. O que vai acabar por acontecer é que esses médicos são deixados à deriva, entregues à sua própria sorte (e azares) o que pode ter implicações graves para todos os envolvidos.

Continua a haver na sociedade, o que o cronista espelha no seu texto, a ideia errónea de que a medicina é uma espécie de trabalho missionário em que limites de horas e respeito pelos profissionais são meras sugestões que podem ser deixadas de lado quando apetece. Que se pode apelar à dedicação e vocação sempre que se pretende impor condições inaceitáveis e vergonhosas. Que se pode eternamente exigir um “dízimo” pelos alegados custos de formação que foi prestada aos médicos e “paga pelo contribuinte”. Que se pagam propinas na faculdade e que os médicos internos são muito mal pagos durante a sua formação no SNS, que bem se podia chamar uma penitência, são pormenores menores.

Esta fantasia abusiva já desvaneceu em países como a Alemanha, que perceberam que, tal como noutras profissões, é preciso oferecer condições dignas, competitivas e atrativas que captem profissionais. Pergunto-me, quem no seu perfeito juízo quereria abdicar de tempo de vida e de qualidade com a família para fazer horas extraordinárias sem fim e prejudicar a sua saúde e dos seus doentes? Aconselho todos os médicos que ponderem este curso a procurar ajuda psiquiátrica ou psicológica, porque tal não é, de todo, saudável.

Parece-me que para o nosso cronista o futuro adivinha-se negro. Com o número de médicos a recusar-se fazer mais de 150 horas extraordinárias a aumentar em Portugal e com um resto da Europa que já está bem mais à frente a este respeito, temo que não encontre quem seja digno de o tratar. Talvez esteja na altura de saltar do teclado para o serviço de urgência e mostrar àqueles médicos malandros como se faz. Mas atenção que não vale fazer “só” 150 horas extra.

A força de um retrato

O retrato do casamento de Isaac Abrahmsz Massa e Beatrix van der Laan, pintado por Frans Hals está exposto no Rijksmuseum, em Amesterdão. Isaac era um comerciante rico numa República que não considerava o lucro um pecado ou sequer uma ofensa. Quis ser retratado juntamente com a sua mulher, com quem casou a 26 de Abril de 1622, porque a arte era uma forma de promoção pública, numa sociedade que, além do lucro, prezava a arte. Mas o que chama a atenção para esta obra não é só isso. O mais curioso é que no retrato feito por Hals, Isaac e Beatrix estão sentados num jardim, lado a lado em plena igualdade. Não há um senhor e a sua mulher. São simplesmente duas pessoas que se amam, sentadas num jardim a desfrutar a vida. Algo possível numa sociedade mercantil, mas verdadeiramente revolucionário no início do século XVII, quando Luís XIII governava a França e o nosso Filipe III acabara de subir ao trono.

Isaac Abrahmsz Massa e Beatrix van der Laan, pintados por Frans Hals, Rijksmuseum

O sucesso da república liberal dos Países Baixos vem bem resumida no último livro de Fareed Zakaria, ‘Ages of Revolution’, publicado em Portugal pela Gradiva, com tradução de Bruno Cardoso Reis. Um breve período de abertura económica, comercial, política e tolerância religiosa centrou naquele pequeno país europeu todo o género de cidadãos. Além dos nativos, filósofos, religiosos, cientistas, matemáticos, comerciantes e políticos oriundos de toda a Europa encontraram ali refúgio. O resultado foi um fervilhar de ideias e actividade mercantil que deu origem a uma inovação tecnológica e conduziu a uma prosperidade ímpar ao ponto de a qualidade de vida dos holandeses se tornar superior à de qualquer outro europeu.

Os Países Baixos acabaram por ser vítimas do seu sucesso. As transformações ocorridas deram origem a fracturas sociais que minaram e destruíram o espírito de abertura que sustentava o progresso até aí ocorrido. A desconfiança perante os avanços tecnológicos de outros estados, a que se juntaram medidas proteccionistas que encareceram os produtos estrangeiros tiveram como resultado uma estagnação que se manteve durante demasiado tempo.

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São lições importantes agora que as transformações ocorridas nas últimas décadas põem em causa o edifício liberal que as sustentou, desta vez a um nível global. No fundo, trata-se do mesmo receio de outrora só que, desta vez, abarca todos os continentes e praticamente todos os estados. A incerteza perante o futuro está a levar à desconfiança e ao fecho de fronteiras. O resultado pode ser um ponto final no período de maior progresso na história da humanidade.

E não é só Trump. A China de Xi Jinping está a limitar o papel do mercado em favor de um estado ainda mais forte e controlador. A Rússia de Putin considera a conquista de outro estado como uma manifestação de força e não de fraqueza. Na União Europeia, a burocracia excessiva e a vontade em criar uma Europa verde e cosmopolita a partir de cima, por decreto, está a destruir a indústria e a impedir a inovação. Em Portugal, trocámos a desconfiança religiosa pela intolerância ideológica face ao lucro e discutimos acaloradamente tudo à excepção do óbvio: como tornar a nossa economia mais competitiva para que se paguem melhores salários?

Zakaria diz que precisamos recuperar valores e um sentido de comunidade adequado aos novos tempos. Timothy Snyder, em ‘On Freedom’, defende que os políticos se devem centrar nas pessoas, em resolver os seus problemas concretos e não fecharem os olhos à realidade. A arrogância mata. Destrói. A abertura à discussão e ao que é novo, e a tolerância perante a diferença, que passa por a perceber para a integrar, o espírito crítico, a inquirição, o querer perceber porquê, a humildade de reconhecer que não sabemos tudo, que nunca saberemos tudo, pois se isso acontecesse terminaria a inovação e o sentido de aqui estarmos, que é a única forma de ultrapassarmos os tempos confusos e estimulantes que vivemos.

Mas não basta desejar e esperar a chegada de alguém que faça um milagre. Se a força do mundo liberal está na envolvência de todos, é cada um de nós quem tem a responsabilidade de fazer a sua pequena parte. Há que exigir mudanças, há que fazer reformas, mas também há que ponderar as propostas, as alternativas, para que não  despertemos numa realidade pior que a actual. Nos Países Baixos do século XVII, um mercador apenas vendia um produto a quem o comprava. Spinoza tão só questionava. Hals limitou-se a pintar. Isaac e Beatrix somente pediram um retrato que os unisse para sempre.

Eça agora no Panteão

Defronte da casa que os Maias habitaram em Lisboa, na rua das Janelas Verdes, não passaria o féretro que transportaria Eça de Queirós até ao Panteão Nacional. Os distintos turistas alojados no hotel de cinco estrelas, das “estreitas varandas de ferro” ou olhando através das vidraças, não teriam oportunidade de dirigir o último adeus ao escritor, se porventura o houvessem lido. Além do mais, “a cinzenta e arrepiada manhã de chuva” não convida a abrir as portadas. O palácio onde há longos anos não habitam Maias, tivera, mais recentemente, Madonna como ilustre inquilina, a rainha da música pop. Dos painéis de girassóis ficaram apenas as largas pétalas amarelas que decoram as paredes da marmórea escadaria. No dia da transladação de Eça de Queirós, os criados não fardaram luto, não pendiam estandartes negros da fachada, negrume apenas o das nuvens carregadas. Neste lacrimoso dia, em que o escritor ressurgia das cinzas do esquecimento e a obra se libertava do sudário de pó, não se ouviam réquiens no convento de S. Francisco de Paula, não tocavam os seus torreões a rebate, apenas a chuva cantava triste. Rodando pela estrada encharcada pela chuva da manhã, o esquife ainda avistaria, à sua esquerda, antes de chegar ao Ramalhete, a larga bacia de mármore no centro do largo, onde das águas da chuva, emergia a estátua da Vénus Citereia, trazendo pela mão um cupido irrequieto.

No entanto, o meticuloso protocolo determinava que a cerimónia tivesse início ao Palácio de São Bento. Entre os demais parlamentares na arcada do peristilo neoclássico, faltava o conselheiro Acácio, na empáfia do seu paletó, distribuindo efusivas saudações e vigorosos apertos de mão. Estaria já em Santa Engrácia. De alta estatura um tanto encurvada, os cabelos já grisalhos sobre a testa franzida, “o pescoço entalado no colarinho direito” de onde brotava uma gravata azul-celeste, esboçava um sorriso sardónico e comentava toda a sorte de assuntos com grande eloquência e autoridade, gesticulando sempre. Com a maior solenidade, prestaria os mais elevados encómios à obra do nosso escritor, agora no reino celeste, certamente entre os doutores da patrística, redigindo louvores ao altíssimo, na sua agudíssima ironia. A obra queirosiana encontrava-se ainda incorrupta, são páginas que a traça não corrói. A sua transladação confirmava, uma vez mais, que Lisboa apenas se revela verdadeiramente grandiosa quando os deputados da nação assumem os verdadeiros interesses do país. Acácio passaria, acto contínuo, ao elogio da cidade, “uma das mais belas da Europa, decerto, e como entrada, só Constantinopla! Os estrangeiros invejavam-na imenso. Fora outrora um grande empório, e era uma pena que a canalização fosse tão má, e a edilidade tão negligente”.

Mais abaixo, aos pés da escadaria, os esfíngicos leões de pedra, amansados e serenos, aguardavam a partida a charrete que conduziria a urna através das principais artérias da cidade. Acaso a escolta seguisse pelo Bairro Alto, encontraria o miradouro de S. Pedro de Alcântara abraçado pelo temporal. A custo se conseguia avistava, além das grades, por entre a chuva, “o castelo atarracado”, “as casas da Mouraria e de Alfama”, “as pesadas torres da Sé”. Entre as brumas da paisagem triste, parecia desvelar-se, sob o guarda-chuva, a figura do poeta Alencar “de longos bigodes românticos, que a idade embranquecera e o cigarro amarelara”. Àquela hora iria certamente ao hotel Bragança, para se encontrar com João da Ega e Carlos da Maia, que não via há meia dúzia de anos.  “Estás típico, Alencar”, diria Carlos, “a preceito para a gravura e para a estátua”. Na Gazeta do Chiado, lera Alencar que os restos mortais do escritor Eça de Queirós seriam transladados para o Panteão Nacional. Era nesse momento que, à sua frente, passava a memória do que Eça havia sido. Alencar, levado pela emoção, atravessou a esplanada até ao muro para chorar com o rio e as colinas a passagem à eternidade desse escritor nacional. Era nele triste a chuva fora. Mesmo sendo a poesia a mais nobre das artes, não deixava de admirar a escrita prodigiosa do nosso Zola, do nosso Flaubert, João da Ega c’est moi. Sentindo-se impelido a recitar alguma estrofe, nenhuma expressão lhe parecia digna. Ainda assim, cofiando pensativamente os bigodes, declamou estes versos, numa reverência incontida:

Os homens são como folhas
Caindo na fria estação.
Alguns, porém, não fenecem:
Descansam no Panteão!

A caleche desaparecia pela rua de S. Roque. Do teatro da Trindade, saiu Artur Corvelo, contrariado por ninguém reconhecer, lamentavelmente, o seu talento artístico. Debaixo do braço, trazia as páginas do drama que recentemente acabara de escrever, sem dúvida alguma digno dos mais sonoros aplausos nos meios literários. No fim de contas, foi na ilusória esperança de fama literária que viera até à capital. Quisera o fatídico destino, ao rodeá-lo de más influências e de amizades interesseiras, que acabasse por dissipar toda a sua herança em convívios, jantares e paixões. Assim arruinado, via-se obrigado a regressar a Oliveira de Azeméis, não sem antes passar na luvaria da rua Garrett para comprar dois pares de luvas pretas, queria exibir “coisas chics, coisas de Lisboa, no luto da tia Sabina”.

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O Largo de Camões, “velho coração da capital”, não conservava o mesmo “ar mudo e deserto” de finais do século XIX. Nos últimos anos, muita coisa mudara. Nos nossos dias, multidões de turistas atravessam a praça, numa Babel de idiomas distintos, como é próprio de uma capital inovadora, cosmopolita, que pretende ser “a inveja da Europa”. A estátua de Camões, fustigada pelas vagas de aguaceiros, procura, uma vez mais, salvar das águas a sua epopeia. Ega e Carlos da Maia, indo para o almoço com Alencar, caminhavam “sob o frio olhar de bronze do velho poeta”. Conversam sobre Paris, de mulheres e dos amigos. Lamentavam, porém, os vadios e os sem-abrigo daquela época. Criticavam também os políticos que então faziam lembrar “bonecos de engonços, que faziam gestos e tomavam atitudes porque dois ou três financeiros por trás lhes puxavam pelos cordéis…”.

Da igreja dos Mártires saía o padre Amaro, onde acabara de dizer missa, quando reconheceu, entre a multidão, a voz do cónego Dias a chamar por si. A fim de tratar de assuntos burocráticos, viera de Leiria, onde Amaro se deixara seduzir pelos encantos de Amélia, que “no fundo das suas imaginações e dos seus sonhos” fazia arder o seu desejo “como uma brasa silenciosa”. Mas essa chama há muito se extinguira. O cónego Dias, comentando os acontecimentos políticos internacionais, acreditava que a derrota da Comuna serviria de exemplo para não mais se “ouvir falar de república, nem de questão social, nem de povo”. A História aguardava apenas ao virar do século para revelar o equívoco dessa conjetura. Tal como os ímpetos do coração, essas gloriosas certezas também passam.

Quem por eles passava, nesse instante, era a carruagem fúnebre de Eça de Queirós. Se acaso virasse para a rua do Alecrim, em direção ao Cais do Sodré, passaria diante da estátua do escritor, na sua elegante casaca de diplomata, tentando suster, nos seus braços, as formas curvilíneas de uma verdade nua, que procura libertar-se do manto diáfano que ocultava a sua sensualidade aos olhares mais indiscretos.  Mas já no interior do Panteão, as mais altas figuras do estado aguardam ansiosamente a chegada do escritor. No interior do edifício, ao abrigo da chuva, do vento e do povo, encontram-se os políticos. Um deles bocejava molemente. Teria Eça a venturosa honra de conseguir avistar o garboso almirante? Entre outros heróis da nação seria agora sepultado, passando a ter por ilustre companhia “aqueles que por obras valerosas, se vão da lei da morte libertando”.  Assim terminam as memórias póstumas de Eça de Queirós, no dia da sua transladação, que ia tardando quase tanto tempo quanto a construção do monumento onde agora jaz.

Porque são mais fáceis os problemas dos outros?

Quantas vezes ouvimos os problemas dos outros e pensamos como tal não tem grande importância e que o outro está a fazer um bicho de sete cabeças no rol do seu queixume?

Relativizar à distância é tão mais fácil. Arranjar respostas rápidas e sacudir o bloqueio emocional (do outro) é tão simples. Mas quando se tratam dos nossos problemas, o emaranhado emocional cria bloqueios e paralisações nas tomadas de decisões. Quando se vive o próprio problema, sofre-se. Quando se trata do problema do outro, não se sofre em casa própria. Até se pode sentir empatia e claro, uma solidária preocupação, mas a distância afectiva ajuda a não perder a racionalidade e a pensar com maior objectividade, por não sermos influenciados pela subjectividade que cada um, à sua maneira, padece.

Porque não usar em benefício próprio a mesma objetividade para encontrar soluções?  Porque o emaranhado dos nós emocionais toldam as deliberações mentais. A ansiedade ocupa lugar paralisando o pensamento que se contorce a andar em voltas bloqueado num beco sem saída.

Quando se está fechado sobre o próprio problema, a leitura pragmática da questão fica reduzida a um só ângulo; àquele que é contagiado pela infelicidade sentida. Com a visão toldada por tal parece não haver soluções. Já, quando olhamos de fora para o problema que não é nosso, temos uma visão mais ampla e encontramos soluções porque é-nos mais fácil engendrar planos B e C’s, uma vez que não ficamos confinados à única possibilidade que achamos existir.

Mesmo não havendo solução, quando se trata de uma perda ou dano irreversível, há a dimensão temporal que trata de amenizar e diluir o cenário problemático. Numa situação de catástrofe, leva tempo, mas é possível a reconstrução. Os espaços vazios que ficaram sem ruínas para recuperar a partir daí podem dar lugar a novos edifícios. Também no caso de relações que se perdem, fazem-se os lutos e novas relações são possíveis de acontecer. Perdas materiais podem ser recuperadas ou ajustados parâmetros para se lidar com uma realidade, que não tem de ser definitiva e vir novamente a melhorar. Insucessos profissionais podem ser ultrapassados com outros desafios.

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Sendo o ritmo da vida um pulsar não estático e com períodos de altos e baixos, a cadência de bons e maus momentos faz parte. A capacidade de tolerar os tempos de crise, com a perspectiva que tal não vai ficar assim para sempre, permite ver a luz ao fundo do túnel e sair da dita circularidade pantanosa quando os problemas preponderam e influenciam um estado de contínua preocupação.

Quando nos tocam a nós os problemas, devemos fazer o esforço de elevar o pensamento, fazendo uso do discernimento que mais facilmente usamos quando ajudamos outros. A esperança e um olhar no horizonte são o mote para andar para a frente e acreditar na possibilidade de encontrar sempre soluções.

anaeduardoribeiro@sapo.pt

Gronelândia: o relativismo do colonialismo

A Gronelândia, com as suas vastas camadas de gelo e paisagens imponentes, tem  sido historicamente considerado um território periférico nas discussões  geopolíticas, particularmente no que se refere à sua relevância no contexto do  Ártico. Contudo, o degelo das calotas polares e dos glaciares tem emergido como  um fator de interesse estratégico, dada o potencial económico da região para as  grandes potências globais.

Historicamente, os estreitos desempenham um papel fundamental nas relações  internacionais, sendo vistos como pontos estratégicos para o controlo de rotas  marítimas e para o aproveitamento de oportunidades comerciais. O Estreito da  Gronelândia, que liga o Atlântico ao Ártico, reveste-se de particular importância na  geopolítica atual, especialmente para os EUA, conforme enfatizado pelo presidente  Donald Trump. A Rota do Ártico oferece vantagens logísticas substanciais,  permitindo uma travessia de menos de uma semana, em comparação com a rota  do Índico.

Além disso, a exploração da Gronelândia está umbilicalmente ligada à extração de  recursos minerais, embora os custos ambientais decorrentes desta atividade  sejam consideráveis e alarmantes. Embora o degelo proporcione novas  oportunidades económicas, este acelera, simultaneamente, a degradação  ambiental da região. A lógica predominante em torno da exploração que privilegia o  lucro cria a ideia de que os benefícios superam as externalidades negativas. Esta  perspetiva sugere um crescente interesse das potências em acelerar o processo de  degelo para maximizar a utilidade, mesmo que isso envolva custos substanciais  para o meio ambiente e para o bem-estar das futuras gerações.

Sendo um território com uma população nativa reduzida, a exploração e pilhagem  da Gronelândia ao longo dos séculos nunca gerou grandes contestações, mas a ilha  foi ocupada de maneira sistemática e sem grandes resistências. No século XVI, foi  colonizada pelo Reino da Dinamarca, iniciando uma longa história de relações  complexas e, muitas vezes, controversas com os seus colonizadores.

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A população predominantemente de origem inuit, tem se distanciado  progressivamente da identidade nórdica imposta pelos dinamarqueses. Embora a  narrativa dominante continue centrada nos valores nórdicos, observa-se um  crescente nacionalismo, que acentua esse distanciamento. A população local,  cada vez mais consciente da necessidade de preservar o meio ambiente e as suas  tradições, procura afirmar uma identidade própria, desvinculada da herança  colonial.

A relação com os EUA adiciona novas camadas de complexidade identitária. A  presença militar na ilha, com a base aérea de Thule, e o crescente interesse  estratégico dos americanos pela região intensificam os debates sobre a autonomia  da ilha. Em 2019 e 2025, as declarações de comercializar a ilha foi amplamente  rejeitada pela população local, gerando um aumento das expressões de orgulho  nacional e uma resistência a todas as intervenções externas.

O debate sobre o futuro da ilha envolve, portanto, uma complexa rede de interesses,  onde o passado colonial, a influência externa das potências e o sentimento de  nacionalismo confluem numa dinâmica fractal. No seu recente discurso de Ano  Novo, o primeiro-ministro da Gronelândia Múte Bourup Egede afirmou que a ilha  deveria “libertar-se das algemas do colonialismo”.

Embora a Gronelândia tenha deixado a União Europeia em 1985, após um  referendo, a região continua a ser de grande interesse estratégico para a UE. A  questão da soberania continua a ser um tema sensível nas negociações com os  países europeus, especialmente no que concerne à exploração de recursos e à  segurança internacional.

A primeira-ministra dinamarquesa declarou que a ilha “não está à venda”. Não  façamos dela uma Acre ou um Alasca. São declarações que evidenciam a  complexidade das narrativas e interesses dentro da União, como se a Gronelândia fosse tratada como uma peça de um jogo de tabuleiro. A primeira-ministra mostrou- se disposta a negociar acordos e a ouvir as partes envolvidas, destacando, no  entanto, que a soberania do território não pode ser retirada das mãos da  Dinamarca. Um posicionamento que configura uma relação de domínio e de  colonização. Parece que já ouvimos esta ladainha, a ideia dos bons colonos soa nos familiar.

Há um ponto de reflexão ideológica relevante que merece ser examinado: até que  ponto os groenlandeses realmente não desejam ser ocupados; ou não se  entendem ainda como uma nação plenamente independente? A ideia de que os  colonizados sempre rejeitam os seus colonizadores precisa de ser analisada dentro  de um contexto histórico, pois, embora seja mais ou menos aceite de que nenhum  povo deseja ser subjugado, também se aceita que a dinâmica da colonização é  mais complexa do que aparenta. No caso da Groenlândia, a população pode, sim,  almejar uma maior autonomia, com o fortalecimento das suas instituições e maior  controlo sobre os seus recursos, todavia, até agora, não se manifestou de maneira  clara e categórica em relação à independência e soberania.

Se, por um lado, a população procura mais autonomia, por outro, existe um  reconhecimento de que a relação com o seu colonizador oferece um certo grau de  segurança, especialmente de um ponto de vista realista. A ideia de independência  nacional pode ser complexa e até arriscada, considerando os desafios económicos, de defesa e logística que a ilha enfrenta, como os impactos das  mudanças climáticas e a necessidade de desenvolvimento de infraestruturas e de  população. A Dinamarca, apesar das suas limitações, oferece uma rede de  segurança que a torna uma fonte de estabilidade. Assim, a independência,  enquanto ideal, pode coexistir com a perceção de que, no momento atual, a  relação com o país colonizador oferece mais vantagens circunstanciais em termos  de desenvolvimento social, tornando a transição para a soberania um passo em  aberto, que dependerá de uma mudança gradual das condições locais e globais.

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