Migrações desafiam a “levar mais a sério” diálogo inter-religioso
Que papel estão a ter as religiões na construção da paz mundial? O tema é abordado na entrevista Renascença Ecclesia deste domingo. O historiador João Luis Fontes destaca a importância dos apelos constantes do Papa Francisco, que foi o primeiro a alertar contra o perigo de uma “guerra mundial aos pedaços”, e tem vindo a desafiar, sobretudo os líderes ocidentais, a usarem o dinheiro das armas para matar a fome no mundo. Comenta, ainda, os desafios que a nova vaga de migrações trouxe a Portugal e à Europa, e lamenta a atual politização do tema.
Professor e investigador da Universidade Nova de Lisboa, especialista em História Medieval, João Luis Fontes integra também o Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa (UCP). Faz parte do Departamento das Relações Ecuménicas e Inter-religiosas do Patriarcado de Lisboa e é um dos responsáveis pelo Fórum Ecuménico Jovem. Na JMJ Lisboa fez parte da equipa de preparação do Festival da Juventude, ao nível dos eventos religiosos e das relações com outras religiões. Faz, ainda, parte da Rede Cuidar da Casa Comum e do projeto ‘Eco Igrejas em Portugal’, inspirados pela encíclica do Papa ‘Laudato Si’.
Num contexto internacional de guerras e conflitos generalizados, com a mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz ainda como pano de fundo, e no arranque de um Ano Jubilar na Igreja Católica dedicado à Esperança, começo por perguntar que papel podem ter, e estão a ter as religiões na construção da paz mundial?
A prática que tem sido seguida nos últimos anos, e o trabalho pastoral desenvolvido a este nível, têm salientado muito – e esse é também o discurso do Papa – que as religiões sejam sempre entendidas como uma força de paz e não como uma força de guerra ou de radicalização de posições em contextos de conflito.
Penso que este é, sobretudo, um grande desafio para nós também, na forma como vamos construindo este trabalho pastoral ao nível ecuménico e ao nível do diálogo Inter-religioso, para que as religiões se entendam precisamente neste sentido. Basta relembrar como, desde o tempo do Papa João Paulo II, e sobretudo na relação com a Comunidade de Santo Egídio, se foi sempre promovendo os encontros de Assis, no sentido de ser um espaço, por um lado, de um testemunho concreto de que as religiões são e querem ser um espaço de construção da paz e, ao mesmo tempo, também um desafio para que se ultrapassem os discursos, muitas vezes de radicalização, ódio e distorção do nome de Deus, em nome de conflitos ou até de eliminação de povos, de culturas, de grupos.
“Acho que não há domingo, no Angelus, em que ele não volte a insistir ‘Por favor, calem as armas! Faça-se sentir a paz’. O apelo do Papa é sempre um apelo profético”
Nós temos uma grande utopia proposta pelo Papa Francisco para este Jubileu, que é um cessar-fogo global. É um apelo que pode mobilizar os vários líderes religiosos?
Eu acho que sim. Os apelos que o Papa faz na Bula de Proclamação do Jubileu são todos grandes reptos, no sentido de ultrapassar situações difíceis e que afetam hoje a humanidade. Põe, desde logo, o repto da paz, e aí as religiões, obviamente, devem ter um contributo fundamental, para não serem elas próprias legitimadoras de conflitos – como muitas vezes foram no passado, e ainda no presente – , mas perceberem que o nome de Deus é sempre a paz. E, neste caminho, o repto do Papa – e ele tem insistido, acho que não há domingo, no Angelus, em que ele não volte a insistir ‘Por favor, calem as armas! Faça-se sentir a paz’. Lembra um bocadinho São Paulo, que dizia ‘tem de se falar nisto a propósito e a despropósito’.
O apelo do Papa é sempre um apelo profético na parte que lhe é possível fazer, e percebe-se que ele é muitas vezes acompanhado, também, de todo um esforço diplomático, de fazer sentir a sua voz e a voz dos cristãos em contextos de conflito e dizer ‘por favor, o nosso testemunho cristão exige que acabemos com a guerra’.
O Papa faz esse esforço de não esquecer nenhum conflito, domingo após domingo…
Exatamente. E sempre que há conflitos novos, problemas novos que aparecem, eles ecoam na voz do Papa e na mensagem que ele transmite aos fiéis.
Acompanho sempre o Angelus, e já me aconteceu várias vezes haver situações que o Papa denuncia de que eu não estava a par, o que mostra essa dimensão de preocupação e de diplomacia global que existe.
Sim, sim. E, no fundo, essa atitude que o Papa não só pede, mas que ele próprio faz em primeiro lugar, é esta ideia de que a Igreja deve ser uma Igreja que escuta, que acolhe e que está atenta àquilo que se passa no mundo. Não é uma Igreja fechada sobre si própria, a pensar apenas nas coisas litúrgicas ou eclesiásticas, no sentido mais tradicional – e, se quisermos, mais pejorativo do termo -, mas é uma Igreja aberta ao mundo, que escuta, um coração que acolhe todos os problemas que afetam os filhos e filhas, sejam eles cristãos ou não cristãos, que afetam a humanidade. Sabendo que, como já dizia o Concílio Vaticano II, somos sempre chamados a ser um sinal desta reconciliação e a sermos agentes, fermento de construção de um mundo novo.
O Papa talvez tenha sido um dos líderes mundiais que alertou em primeiro lugar para o facto de estarmos numa guerra mundial aos pedaços, e hoje penso que já temos mais consciência disso. Francisco sublinha sempre que a paz não vem apenas com o fim da guerra e que há várias áreas que se interligam e que contribuem para este momento que estamos a viver. Este convite a construir “um mundo no qual nos descobrimos diferentes, mais unidos, mais irmãos” é uma mensagem fundamental no atual momento de polarização?
Eu penso que sim. Aliás, a mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz é muito interessante, porque ele fala dos desafios todos – de que já tinha falado na Bula do Proclamação do Jubileu e que aqui retoma -, como a questão do perdão das dívidas, do cuidado dos pobres, do escutar ‘o grito dos pobres e o grito da Criação’, mas depois ao falar da paz, fala sobretudo de um coração convertido. Esta ideia de que a paz não é apenas o cessar dos conflitos…
É a ideia de desarmar o coração…
Exatamente. Ou seja, que há uma reconciliação que tem de acontecer por dentro, e essa às vezes é mais difícil, porque muitas vezes calam-se os conflitos, mas as tensões, as memórias doridas do passado, as construções identitárias que muitas vezes se radicalizam, levam precisamente a estes os conflitos e que se mantêm na memória das pessoas. É essa cura, se quisermos, essa reconstrução por dentro que é preciso fazer, e essa demora mais tempo. E aí também as religiões têm um papel fundamental, até para dizer que isso é possível. Porque muitas vezes as pessoas trazem memórias muito sofridas, muito difíceis, de conflito, de perseguição, e fazer brotar daí o perdão e a reconciliação, muitas vezes – e é aquilo que o Papa vai dizendo também – isso só acontece porque é Deus que faz essa reconciliação em nós, é Deus que também trabalha o nosso coração e a terra que somos, para que essa reconciliação, esse sarar, esse reconstruir possa ser possível.
É interessante que as Escrituras falam muitas vezes, até nos contextos do exílio e das perseguições, que Deus é este grande reconstrutor dos muros, o que fecha as brechas, o que permite fazer algo de novo. Isso é muito interessante.
Apelo à desmilitarização. “Parece que o Papa está em contracorrente, porque no momento discute-se precisamente a necessidade, por exemplo, de os países europeus aumentarem as verbas encaminhadas para o reforço do armamento, para a sua capacidade defensiva”
Falou dos apelos que o Papa lançou, tanto na Bula de Proclamação (do Jubileu) como na mensagem para o Dia Mundial da Paz, que acabámos de celebrar (1 janeiro). Um deles é para a criação de um Fundo para o combate à fome, financiado por uma percentagem fixa do que se gasta em armas; mas também o apelo ao fim da pena de morte e o perdão total das dívidas dos países mais pobres. Estamos a falar de apelos globais a responsáveis políticos. Isto mostra que o Papa tem consciência da sua influência e que, provavelmente, é a figura religiosa mais ouvida neste momento?
Penso que sim, e que ele tem consciência que, de facto, é preciso continuar a insistir e que não são apelos fáceis. Por exemplo, o apelo da desmilitarização e do encaminhar os fundos das armas para a fome, parece que o Papa está em contracorrente, porque no momento discute-se precisamente a necessidade, por exemplo, de os países europeus aumentarem as verbas encaminhadas para o reforço do armamento, para a sua capacidade defensiva, e o Papa aparece aqui a dizer ‘atenção, o nosso rumo não é por aí’. Ele aponta isto como horizonte e como espaço de reflexão para perceber que temos de ir por outro caminho.
Eu acho que, evidentemente, ele tem mais consciência do que qualquer um de nós, de como este conflito neste momento é complicado, e se está a generalizar em pedaços, está-se a fazer sentir em pontos de tensão muito fortes, seja entre cristãos, e isso é particularmente doloroso para nós, seja entre povos com diferentes religiões, ou até diferentes tradições dentro da mesma religião, como acontece dentro do Islão. Mas, temos sempre aí o religioso envolvido. E isso torna-se particularmente doloroso para nós, que temos consciência de que Deus não é isso, Deus é outra coisa.
“Infelizmente, somos obrigados a reconhecer que em muitos casos ainda encontramos discursos legitimadores (da guerra). Muitas vezes em algumas entidades políticas”
É historiador, professor de História Medieval, um período em que a fé foi usada muitas vezes como justificação para travar muitas guerras. Vemos que isso se repete hoje em muitos discursos radicais, mas é justo ver as religiões como fatores de conflito, hoje em dia?
Na sua natureza e na sua raiz, acho que não. Ou seja, na reflexão que fazemos sobre o que significa a religião e qual o seu papel, não. Infelizmente, somos obrigados a reconhecer que em muitos casos ainda encontramos discursos legitimadores (da guerra). Muitas vezes em algumas entidades políticas, infelizmente, ainda acontece – como no Irão, e também em Israel, às vezes, mais sub-repticiamente….
Às vezes encontramos, sobretudo popularmente, muito difundida esta ideia de que este religioso suporta o conflito e a hostilidade.
Na Europa alguns discursos anti-imigração, quando são fundamentados na identidade cristã do continente, também usam uma deturpação?
Sim, exatamente. Aliás, esse debate é muito interessante e já fez correr muita tinta, precisamente desde o tempo do Papa João Paulo II, que lançou também muito essa questão entre o contributo cristão para a construção da Europa, e como é que equacionamos hoje esse contributo, não só ao longo da história, onde temos múltiplos outros contributos para a construção deste espaço, mas também hoje – e isso depois leva a outras questões, que têm a ver com o papel do cristianismo no mundo contemporâneo e no mundo de uma grande pluralidade religiosa, até no nosso próprio contexto, onde começamos a perceber cada vez mais como é que somos cristãos e como é que o nosso testemunho deve acontecer, sobretudo em grandes cidades como Lisboa, e arredores, onde há essa diversidade.
Migrações. “O problema é que temos muitas vezes estas coisas muito politizadas e muito apropriadas por determinadas ideologias – que o próprio Papa, aliás, tem denunciado (…) E hoje, eu acho que este é um dos grandes desafios que temos, não demonizar o outro (…) e, se calhar, levarmos mais a sério o diálogo intercultural e inter-religioso”
A vaga de migrações que estamos a receber – falou de Lisboa, mas acontece em muitas outras cidades – trouxe a Portugal e à Europa pessoas de culturas e tradições religiosas diferentes. Isto é um desafio? O diálogo inter-religioso foi prejudicado? Pessoas menos integradas podem não estar tão à vontade na sociedade como estavam antes?
Não tenho tanta certeza disso. Acho que o problema é que temos muitas vezes estas coisas muito politizadas e muito apropriadas por determinadas ideologias – que o próprio Papa, aliás, tem denunciado amplamente e muitos sectores da igreja.
Podemos relembrar o início do texto hebraico que dizia ‘lembra-te que foste peregrino em terra estrangeira’, ‘tens de acolher imigrantes porque tu também já foste imigrante em terra estrangeira’.
Esta preocupação, mesmo no povo de Israel que tinha uma noção mais assoberbada de identidade própria e da sua diferença em relação aos outros povos, esta consciência de que partilhava uma condição como peregrino e imigrante com todos os outros povos era uma obrigação para o acolhimento. E hoje, eu acho que este é um dos grandes desafios que temos, não demonizar o outro, não despersonalizar o outro para o transformar numa coisa e poder legitimar discursos de ódio e de violência. Acho que é, sobretudo, um desafio para, se calhar, levarmos mais a sério o diálogo intercultural e inter-religioso.
Aliás, a pergunta vai nesse sentido, de perceber se a diversidade religiosa pode ser vista como um fator que dificulta a integração?
Eu acho que sobretudo desafia. Tem que desafiar o diálogo inter-religioso e levá-lo a sério, porque muitas vezes nós, no nosso contexto, que sempre vivemos numa ideia de uma maioria católica, de um país cristão, às vezes com discursos historiográficos que quase que apresentam uma correlação direta entre cristianismo e identidade nacional – que são sempre termos muito complicados -, hoje vemo-nos confrontados como é que construímos esta identidade. Ou seja, como é que nos entendemos enquanto comunidade – se calhar é um termo mais significativo aqui -, integrando, acolhendo todos estes povos que nos procuram por motivos diversos, e como é que conseguimos construir comunidade.
Nesta realidade, que agora começa a ser tão diferente em termos culturais e em termos religiosos, percebemos que o diálogo inter-religioso não é só para os outros, como nos países de maioria muçulmana, onde os cristãos são minoria, e onde às vezes até, em algumas cabeças, este diálogo religioso faz mais sentido, porque nós próprios procuramos assegurar a nossa liberdade, mas não entendemos tão facilmente isso quando somos maioria e também percebemos como é que temos de criar espaço para que os outros sejam. A ideia aqui é sempre quanto mais os outros são, mais nós somos. E ainda não percebemos ainda isso, às vezes…
“Acho que era importante fazer sentir às nossas comunidades que, como cristãos, somos chamados a esta dinâmica de acolhimento, compreensão, conhecimento do outro e de respeito pelo outro. E perceber que somos chamados a construir comunidade com todos”
Mas Portugal, ao nível do diálogo inter-religioso, tem sido um bom exemplo até agora? Estou a lembrar-me daquele grupo de trabalho que existe na área da saúde, que reúne várias religiões e confissões cristãs…
A Comissão da Liberdade Religiosa tem trabalhado bem também, a esse nível, no sentido de até dar existência legal e reconhecimento às diversas igrejas e grupos religiosos que se instalam no espaço nacional. Isso é importante. Acho que temos é que também, talvez, pensar o diálogo inter-religioso não apenas a esse nível, que é importante, mas também a um nível pastoral que chegue mais à vista e ao coração das pessoas. Porque isto também se joga no concreto da vida das pessoas, no dia-a-dia. Acho que era importante fazer sentir às nossas comunidades que, como cristãos, somos chamados a esta dinâmica de acolhimento, compreensão, conhecimento do outro e de respeito pelo outro. E perceber que somos chamados a construir comunidade com todos.
Tem graça essa expressão ‘chamar à vista e ao coração das comunidades’. Há trabalho que se faz e que não é muito divulgado?
Fica em pequenos círculos, em círculos de reflexão, que também são importantes. É a mesma coisa com o ecumenismo, há instâncias diversas de procura de construção desta unidade, ou dos caminhos, se quisermos, de reconciliação e de unidade, umas que passam pelo diálogo teológico e por comissões que trabalham muito especificamente sobre textos, sobre as tradições, mas depois há um outro nível que é preciso fazer chegar às pessoas, ajudar as pessoas a fazer esta descoberta da importância da reconciliação e como é que a podemos viver no dia-a-dia.
Estamos em janeiro, que é o mês por excelência em que, pelo menos uma vez por ano, muitas pessoas ouvem falar de ecumenismo, durante a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que é um momento privilegiado para o encontro e para o diálogo ecuménico em Portugal. Como é que avalia a relação e a cooperação entre as várias comunidades cristãs em Portugal?
Eu tenho estado, desde 1998, no grupo que deu origem ao Grupo Ecuménico Jovem e ao Fórum Ecuménico, que na altura nasce na sequência da II Assembleia Ecuménica de Gratz, onde houve a participação de uma comissão alargada de portugueses, católicos e de outras confissões cristãs, com uma grande presença juvenil, e que na altura sentiram-se muito interpelados pela força que os jovens tinham nesta dinâmica ecuménica. A par de outros diálogos que já aconteciam, entre a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e o Conselho Português das Igrejas Cristãs (COPIC) – instâncias oficiais de diálogo que todos os anos tinham a sua celebração nacional -, surgiu a necessidade de fazer chegar isto às bases, chegar aos jovens e envolvê-los nesta dinâmica, e perceber que muitas vezes os jovens são aqueles que podem ter mais possibilidade de ultrapassar, ou de não terem tão presentes, tão vivas, algumas memórias doridas de confronto do passado.
Aí estamos falar das grandes tradições cristãs, que vieram desde a Reforma. Sobre as novas formas de comunidades cristãs que estão a chegar ao país, sobretudo por força da imigração brasileira, que têm muitas vezes uma estratégia de conquista e de poder. Isso coloca desafios específicos ao diálogo ecuménico?
Claro! Ao diálogo ecuménico, seguramente. É verdade que têm também emergido algumas iniciativas que têm privilegiado e feito muito bem este diálogo com o mundo evangélico.
Sabemos que o mundo evangélico é muito diverso, mas, por exemplo, o Encontro Cristão de Sintra, que acontece já há vários anos… Nós em Lisboa temos uma Vigília Ecuménica Jovem no primeiro sábado do Oitavário (Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos), e normalmente, pouco depois acontece este Encontro Cristão em Sintra. Este ano até vão ser os dois sábados, a Vigília a 18 de janeiro, e o Encontro a 25. E esse Encontro tem tido uma diversidade espantosa de comunidades evangélicas, que também passa muito por haver uma relação quase capilar, em que vão se conhecer, há pessoas do grupo que prepara que vão às comunidades, vão conhecer os pastores.
E fazem um trabalho social conjunto ao longo do ano, não é só nessa semana.
Exatamente. Há aqui uma lógica de conhecimento mútuo e de cooperação. Aliás, eles estão a avançar para a ideia de ter um espaço, uma estrutura de cooperação ao nível do auxílio aos mais pobres, ao nível da saúde e da solidariedade. Tem sido uma iniciativa muito feliz no acolhimento a estas novas comunidades que florescem muito nos arredores de Lisboa, e eles apanham toda a região de Sintra, Oeiras, Cascais, etc. Portanto, há ali um desenvolvimento enorme de novas comunidades cristãs.
É uma dinâmica interessante para pensarmos, porque muitas vezes parte daqui. Às vezes basta mudar um pastor numa comunidade e o pastor que vem não é tão sensível a este diálogo, e é preciso quase começarmos de novo. Às vezes também com os párocos, não é só de fora, também acontece com os os nossos responsáveis das comunidades. Há um trabalho a fazer no sentido desta sensibilização.
Jubileu 2025. “Acho muito interessante a forma como o Papa colocou o Jubileu, sob a ideia da Peregrinação da Esperança, que é um tema aberto. Não é um tema demasiado católico”
Olhando para o Jubileu que já estamos a viver, no último Natal estiveram presentes na Basílica de São Pedro representantes de igrejas e comunhões cristãs de Roma. Alguns desses convidados ecuménicos foram os primeiros a atravessar a Porta Santa, depois do Papa. Este gesto reforça também a dimensão ecuménica, em especial este ano, em que vamos celebrar os 1700 anos do Concílio Ecuménico de Niceia?
Este ano é muito rico em alguns desafios interessantes. Aliás, o Papa nomeia-os em vários dos documentos: na Bula (do Jubileu), na carta que escreveu em Novembro ao Patriarca de Constantinopla, a propósito da Festa de Santo André, para, por um lado, endereçar-lhe as normais congratulações pela Festa do Santo, mas também para relembrar estes 1700 anos de Niceia, e o facto de em 2025, por feliz coincidência, celebrarmos a Páscoa em conjunto (no mesmo dia, 29 de abril), e o desejo que o Papa já manifestou de ir a Niceia – hoje Iznik, na Turquia – para celebrar em conjunto o aniversário do Concílio.
Temos aqui um conjunto de desafios muito interessantes e a própria temática – eu acho muito interessante a forma como o Papa colocou o Jubileu, sob a ideia da Peregrinação da Esperança, que é um tema aberto. Não é um tema demasiado católico, é uma abordagem ao Jubileu que toca profundamente duas dimensões: a dimensão da procura do sentido, e isso atravessa todos os homens e mulheres que vivem neste mundo, qual é o sentido da nossa vida, da nossa luta, dos nossos sonhos, da nossa procura de construção do mundo? E depois esta lógica da esperança, onde é que encontramos os motivos, aquilo que nos anima para continuarmos nesta luta e nesta procura?
Claro que o Papa propõe, obviamente, o sentido da esperança cristã e como esta esperança se funda na certeza de um amor de Deus que é fiel e que não engana, que esse amor se manifesta na pessoa de Jesus e que nele se dá uma resposta de um sim definitivo, que é um sim de vida, de sentido, não é o sim da morte, do caos. É um sentido para a nossa própria história pessoal e para a história do mundo, e que isso, no fundo, é uma utopia que anima, obriga a não desistir mesmo sendo realista. Porque ele também diz isso, que a esperança não é uma coisa etérea, é realista, e que associada à esperança vem sempre a paciência.
Uma última pergunta, que tem a ver com duas questões muito rápidas que vou juntar: a primeira é que, efetivamente, este ano celebramos a Páscoa em conjunto e o Papa tem insistido muito na necessidade de se encontrar uma data comum a todas as igrejas para a celebração da Páscoa – seria um gesto notável, pelos 1700 anos de Niceia. Mas, também apontando ao Jubileu, anunciou a criação de uma Comissão dos Novos Mártires, lembrando o que aconteceu em 2000, com o Papa João Paulo II. Estas ‘testemunhas de fé’ não serão apenas da Igreja Católica, mas de todas as confissões cristãs. É um sinal importante que o Papa dá?
Sem dúvida. O facto de ele ter já incluído no calendário católico outros Santos que vêm da Igreja Ortodoxa, é muito significativo desse facto. A ideia de que a Santidade não é um património exclusivo dos católicos. Aliás, a Escritura já dizia que o Espírito sopra onde quer, portanto, acho que temos de alargar o coração nesta perspetiva.
É evidente que a canonização sempre teve uma ideia de sancionamento de uma determinada forma…
Mas, aqui, estamos a falar de mártires, acho que é bastante evidente.
Sim, sim! Aqui é um alargar, de facto, do coração nesta perspetiva. Aliás, ele volta a falar nisso, a importância da comemoração dessa memória, deste martírio de sangue, deste testemunho, que já tinha estado muito presente no Jubileu do ano 2000 – o Papa João Paulo II tinha criado precisamente esta comissão, presidida pelo Andrea Riccardi, para estudar a questão dos mártires do século XX. Lembro-me que quando participei no ano 2000, como isto marcou muitas celebrações e muitos espaços no decurso do Jubileu vivido em Roma nesse ano, e como permaneceu, porque há espaços concretos em Roma que recordam os mártires do século XX, como esta história de martírio e de testemunho com a vida permanece, e como ela é transversal e ultrapassa – sempre ultrapassou – estas barreiras confessionais. São barreiras que nós criámos, o Espírito passa-as bem e vai criando sinais de que elas são perfeitamente fictícias e que são mais impeditivas do que criadoras seja do que fôr.